segunda-feira, fevereiro 23, 2009

o que a casa guarda

Vejo parte do recheio da nossa casa em Portugal ser empacotado e seguir para Cambridge, onde servirá para rechear aquele que será palco do episódio seguinte das nossas vidas. São coisas que achamos duplicadas, ou distintas do padrão ou padrões decorativos, ou prolixas em número ou em género, que farão serviço útil em segunda morada; mas é também aquele núcleo essencial que nos define e nos é imprescindível e nos nãopermite um divórcio geográfico – ainda que temporário, ambicionadamente temporário. É a aquilo a que a língua inglesa designa por household – o que a casa guarda.

Mas uma casa não guarda apenas objectos, coisas, na sua definição inanimada e utilitarista. Guarda, em cada peça, um uso, uma experiência, uma breve memória – a personalidade, um traço de vida; e são também as coisas que ficam, os móveis que fazem guarda, as molduras que vigiam a partida. É estranha a sensação de ver dividido o que a casa guarda, porque é uno o que nos guarda a vida e que é a nossa própria vida.

E vejo isso, o que a casa guarda, ser posto em caixas numeradas, codificadas, alinhadas, cuidadosamente, como se tudo tivesse a fragilidade de procelana e valor de diamante. Quem nos guarda o que a casa guarda fá-lo com a certeza de movimentos de quem os acha repetidos e com a absoluta discrição de quem os sabe sempre estranhos. Quantas moradas terão já dividido e empacotado? Quantas vidas terão já visto passar entre as mãos que palpam o valor pressentido das coisas, nos braços que sentem o peso da emoção de cada objecto? Quantas vidas terão já procurado adivinhar no inventário pessoal pulverizado que encaixotam? E nas coisas que ficam – nas molduras que mantêm a vigia, nos móveis que cumprem a guarda? É uma confidência quase velórica de quem o já viu acontecer a conta de vezes que o faz natural.

Mas sei que o que a casa guarda não se detém dos objectos que hoje se vêem separados. O recheio que hoje parte são antes memórias avezadas, espaços já experimentados, que farão conhecida a morada (ainda) estranha que quizemos e nos alongará a vida que as casas, assim, nos guardam.

Porque o que a casa guarda guardamo-lo nós – somo nós.