domingo, abril 17, 2005

ensaio de lucidez

Tomo a liberdade de partilhar o ensaio de lucidez que nos é oferecido por Mário Beja Santos:

"Tem o nariz entupido? Dói-lhe o estômago? Vá ao supermercado!

Tem mesmo o nariz estupido? Não sofre de rinite, sinusite ou alergia? Em breve vai ter liberdade de escolha, quando for ao hipermercado. Ali, ao seu dispor nas prateleiras, entre dezenas de marcas, você vai poder escolher entre Vibrocil, Neo-sinefrina, Narizina, Nasex, mas também Antigrippine, mas também Sinerbe ou Constipal. Você vai escolher, ouviu?

Entre gotas para aplicar no nariz e os comprimidos, o que é que prefere? É evidente que se deve preocupar com os efeitos secundários, o seu nariz entupido até pode resultar do uso de alguns medicamentos, mas o actual Governo deu-lhe o empoderamento, isto é você vai ter poder de escolher e escolher em segurança. É simples. Para escolher entre comprimidos e as gotas é só preciso saber que os comprimidos não devem ser tomados por hipertensos, pessoas com má circulação, doentes cardíacos, entre outros. As gotas devem ser usadas por poucos dias e com precaução, para que não sejam prejudiciais. Há ainda a considerar nos comprimidos as outras substâncias que eles possuem e que não actuam neste sintoma. Ah, cuidado: comprimidos com anti-alérgicos não devem ser tomados por pessoas que conduzem, não se podem tomar bebidas alcoólicas pelo risco de sonolência aumentada. Ah, outro cuidado: também são contra-indicados em doentes com hipertrofia da próstata e com glaucoma.

Vê como é simples? No caso de uma azia ou dor de estômago, você também vai ver que a escolha é simples. Sabe-se que o cancro de estômago é muito comum em Portugal e porque os sintomas de azia ou dor podem ser os primeiros a aparecer, recomenda-se que tome estes medicamentos por pouco tempo, sem vigilância. A escolha vai ser ampla, acredite, alguns deles até aparecem na televisão. Você não ouviu falar em AlkaSeltzer, Rennie Digestif, Kompensan, Pepsamar ou Leite de Magnésia Philips? A escolha não é difícil. Atenção aos outros medicamentos que anda a tomar, pode haver interacções bem complicadas. Há os que provocam prisão de ventre mais ou menos grave, outros provocam diarreias; alguns não podem ser tomados por doentes que necessitam de reduzir o sal, como hipertensos, doentes cardíacos, diabéticos, doentes renais e do fígado, por exemnplo; muitos deles não podem ser tomados por pessoas com doenças dos rins, como os insuficientes renais ou os idosos. Ah, a tenção: a maioria destes medicamentes, quando tomados por pessoas sujeitas a outros medicamentos, interferem com a sua absorção e reduzem a acção dos outros medicamentos, como sejam antibióticos, anti-fúngicos e outros medicamentos para a úlcera do estômago.

O empoderamento é mesmo isto: você trata a prisão de ventre, a febre, a constipação e a tosse no hipermercado. Entidades públicas e privadas vão pô-lo em formação contínua. Por exemplo, você vai ficar a saber quais os princípios activos mais usados pelos norte-americanos e britânicos para actos desesperados. Você vai ficar a saber que a aspirina só não pode ser tomada por pessoas com idade inferior a 12 anos, pessoas a tomar anticoagulantes ou com problemas de estômago. Ah, atenção às associações entre a aspirina e outras substâncias. A associação com cafeína pode comportar elevados riscos. Agora que você vai entrar em empoderamento irá ouvir falar em hidróxido de magnésio, hidróxido de alumínio verá que pode escolher laxantes, antitússicos e expectorantes.

Portugal é um país com elevados indicadores de automedicação responsável. É claro que há para aí gente espalhafatosa a insinuar que, só na pílula do dia seguinte, está em marcha uma calamidade silenciosa, visto que esta utilização deve ser feita a título excepcional e descobre-se agora que a maior parte das suas utilizadoras as toma regularmente, candidatando-se a doenças mortais.

Afinal, a escolha de um medicamento não pode ser feita indiscriminadamene, deve ter por base a idade do doente, o seu estado, a existência de outas doenças, os tipos de queixas, a duração e gravidade. A escolha depende ainda de outros medicametos que o doente esteja a tomar, porque há sempre o risco do aumento da toxicidade.

Se houver engano, quem paga é você, à partida. Se houver acidente, pagamos todos (por isso é que há hospitais, a emergência médica, as lavagens de estômago, os serviços de reabilitação).

Para que não haja uma calamidade de saúde pública, o seu empoderamento nos hipermercados vai ser apoiado por farmacêuticos que não existem em Portugal, o que também não é um problema. Como a missão dos hipermercados é o bem comum, certamente que esses farmacêuticos virão da Bielorrússia, Macedónia, Bulgária ou Ucrânia. Sempre fomos um país tolerante e os profissionais de saúde imigrantes gostam muito da nossa comida.

Um último aviso antes de você iniciar o seu empoderamento. Exija recomendações quanto à duração do tratamento, o que deve fazer se não melhorar ou até piorar. Recorde-se que a demora de um diagóstico pode ter consequências graves, como sucede com o cancro do estômago ou dos intestinos. Habitue-se a exigir do seu hipermercado segurança alimentar, resposta à auto-estima, e a ser tratado como num verdadeiro espaço de saúde. O mundo mudou e você agora tem o empoderamento."